Licitação: O Contrato Administrativo como ferramenta para garantia do interesse público. Limites de atuação diante do poder/dever de Fiscalização da Administração.
Ana Paula Costa. Advogada, especialista em Direito Público e em Gestão Pública.
A fim de resguardar os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal foram conferidos poderes à Administração Pública que por sua vez deverá agir em prol do interesse público.
Parece clichê dizer que a Administração Pública (e aqui consideramos todas suas esferas de atuação) representa exclusivamente o direito dos administrados. Será através dela e de seus servidores que grande parte das garantias dos indivíduos serão preservadas.
E por isso, por se tratar de interesse coletivo que a Administração possui regras próprias para firmar contratos cujo objeto será (ou pelo menos deveria) a contratação de bens e serviços que visam atender as necessidades do cidadão através de políticas públicas, via de regra, através de licitação, (salvo as exceções previstas em lei), surgindo então, um dos tipos de contrato administrativo.
Entretanto, quando o assunto é contrato logo nos remete ao tradicional direito privado, onde os direitos e obrigações são avençadas entre as partes. Contudo, quando estamos tratando de contratos administrativos (e aqui citamos os contratos de aquisição e/ou prestação de serviços firmados com a Administração Pública) a Lei de Licitações 8.666/93 traz, além de regramento específico para as contratações de acordo com cada modalidade, as peculiaridades destinadas a esse tipo de instrumento que tem como sua característica principal a unilateralidade.
E não poderia ser diferente! Já que um único instrumento contratual irá garantir o atendimento ao interesse da coletividade. Costuma-se dizer, que os contratos administrativos são muito semelhantes aos contratos de “adesão” já que ao particular não é conferido o direito de alterá-lo acordo com seu interesse. A grande diferença aqui está no conteúdo do contrato. Diferente do contrato de adesão a Administração é obrigada a prever no instrumento exclusivamente os direitos, regramentos e obrigações expressos em lei específica.
E em que pese a existência legal de cláusulas exorbitantes características dos contratos administrativos, que colocam a Administração em posição de superioridade perante o particular, não poderá ela, por exemplo, criar penalidades se não as prescritas em lei, assim como estará obrigada a prever contratualmente quais as obrigações do contratado e de que forma irá exigir seu fiel cumprimento.
Atrelado a esse regramento, uma vez realizado o processo de compras, respeitadas as peculiaridades da Lei de Licitações e após a assinatura do contrato, de um lado teremos a Administração, cujo dever é de fiscalizar a prestação de serviços (ou entrega do bem) de forma a garantir o estrito cumprimento das obrigações e ditames previstos no contrato administrativo, a final, estamos tratando de investimento de dinheiro público.
Do outro lado, o particular, cuja responsabilidade é de cumprimento de uma obrigação dentro dos parâmetros definidos no instrumento. Nem mais, e nem menos. Não há margem para negociações que alterem o objeto ou que ofereçam vantagens não previstas em contrato, excluindo-se apenas as hipóteses de aditivo, que também são regulamentadas em lei.
Nota-se que por diversas vezes ressalto o interesse público como principal objetivo do contrato administrativo. E não só do contrato, mas de todos os atos daqueles que nos representam, estando aí, a meu ver, a principal razão da estabilidade dos servidores. Será conferido a eles o poder de representar os administrados fiscalizando e denunciando eventuais irregularidades que verifiquem na execução dos serviços, que possa, de alguma forma, gerar prejuízos à Administração e em consequência, lesar os interesses coletivos.
Acerca da temática, bem explana Reinaldo Couto:
“A finalidade deste regime jurídico diferenciado, mitigador da relação equilibrada entre as pessoas envolvidas, é a satisfação do interesse público, sendo certo que, para o Poder Constituinte Originário, tal interesse é valor tão caro que pode afastar o princípio Constitucional da Igualdade”.
Não obstante a isso, a exemplo da regulamentação do processo de contratação pela Administração a atividade de fiscalização, que muito embora, atue na defesa de interesses coletivos deverá prezar pela legalidade, ponderando, contudo, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
É entendimento pacífico que, em virtude do interesse público envolvido nos contratos administrativos constitui-se um poder-dever de fiscalização à Administração, sendo nesse caso afastada a discricionariedade.
A respeito da fiscalização do contrato, Marçal Justen Filho leciona que:
“O regime de Direito Administrativo atribui à Administração o poder-dever de fiscalizar a execução do contrato (art. 58, III). Compete à Administração designar um agente seu para acompanhar diretamente a atividade de outro contratante. O dispositivo deve ser interpretado no sentido de que a fiscalização pela Administração não é mera faculdade assegurada a ela. Trata-se de um dever, a ser exercitado para melhor realizar os interesses fundamentais. Parte-se do pressuposto, inclusive, de que a fiscalização induz o contratado a executar de modo mais perfeito os deveres a ele impostos.”
Sobre o assunto, Celso Antonio Bandeira de Mello aduz:
“Em decorrência dos poderes que lhe assistem, a Administração fica autorizada –respeitado o objeto do contrato– a determinar modificações nas prestações devidas pelo contratante em função das necessidades públicas, a acompanhar e fiscalizar continuamente a execução dele, a impor sanções estipuladas quando faltas do obrigado as ensejarem e a rescindir o contrato se o interesse público demandar.”
Enfatizo, entretanto, que conforme observamos doutrinariamente o poder-dever da Administração é o de fiscalizar o contrato com intuito garantir o cumprimento das obrigações, sempre visando a garantia do interesse público. Para isso, poderá se valer da abertura de processo administrativo para apuração de irregularidades.
E é justamente nesse ponto que gostaria de chegar. A obrigação da Administração é de fiscalização do contrato. A aplicação de penalidade será consequência de um processo sancionador no qual serão analisados os fatos e argumentos da contratada, dentro dos preceitos vinculados ao direito de contraditório e ampla defesa.
Temos, portanto, claramente designado o dever da Administração em preservar o interesse público mediante ostensiva fiscalização que evite o dano ao erário e ao patrimônio público. Contudo, tal obrigação não poderá extrapolar as regras previstas em contrato.
Logo, é possível afirmar que o desequilíbrio concedido à Administração em virtude das cláusulas exorbitantes e o consequente dever de fiscalização é inerente ao interesse público envolvido e não ao poder sancionador da Administração.
Por essa razão é imprescindível que os princípios da proporcionalidade e razoabilidade sejam norteadores da atividade dos fiscais do contrato administrativo que aliados ao poder-dever garantirão a decisão mais eficiente ao caso concreto.
Sabe-se que os Órgãos de Controle no exercício do seu poder fiscalizatório externo aduzem ao fiscal do contrato a responsabilidade pelo seu cumprimento dentro dos parâmetros firmados pelas partes, que responderão, inclusive nos casos de omissão:
“Na jurisprudência do Tribunal verificamos que a Corte de Contas tem condenado tais agentes quando eles atuam de forma dolosa, atestando a realização de serviços não executados, hipótese em que são responsabilizados pelo prejuízo causado ao erário, solidariamente com a empresa contratada.
De outro tanto, se o fiscal, ainda que sem intenção de causar dano ao erário, atua de forma negligente na fiscalização, ele também pode ser responsabilizado pelo prejuízo para o qual concorreu com sua conduta indevida. É o caso da substituição dos materiais definidos no contrato por outros de qualidade inferior.”
Acórdão nº 859/2006 – Plenário:
Ementa: A negligência de fiscal da Administração na fiscalização de obra ou acompanhamento de contrato atrai para si a responsabilidade por eventuais danos que poderiam ter sido evitados, bem como às penas previstas nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.443/1992.
Apesar disso, o fiscal do contrato tem o dever de agir com cautela e vinculado às estreitas obrigações expressas em contrato. E isso não significa de forma alguma ser negligente, mas razoável e proporcional, adequando os fins aos meios como forma de atendimento ao interesse público.
E o que seria uma fiscalização razoável? Nada além do que já lhe é permitido no exercício de suas funções, podendo valer-se de diligências, reuniões de ajuste de conduta, pedido de esclarecimentos, diálogos com os representantes das empresas, concessão de prazo para regularização de situações de menor impacto, sempre visando o atendimento integral do contrato e finalmente, quando caracterizado o prejuízo ao interesse público, instaurar o processo administrativo sancionador.
Resta, portanto, notório que a atuação razoável nada mais é do que exercer o poder-dever de fiscalização do contrato, e não o dever de penalizar diante da hipótese de eventual descumprimento por falhas operacionais que não tragam prejuízo ao interesse público. Como consequência, teremos a aproximação do público com o privado unindo esforços em busca do bem maior que é a garantia de atendimento e prestação de serviços de relevante interesse social.
Em contrapartida ao acima exposto uma vez identificada pela fiscalização irregularidade que possa causar lesão ao erário é dever da Administração averiguar e aplicar as penalidades previstas em contrato. Entretanto, para que isso ocorra, é imprescindível destacar que toda penalidade a ser aplicada, da mais branda à mais severa, deverá ser precedida de processo administrativo para apuração das irregularidades garantindo a ampla defesa e o contraditório, sob pena de contrariar o disposto na Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
O processo administrativo sancionador, que no âmbito da Administração Pública Federal é regulamentado pela Lei 9.784/99 garantirá ao fornecedor contratado pela Administração o direito constitucional de se insurgir aos fatos narrados justificando os motivos que levaram ao descumprimento. É muito corriqueiro verificar descontos compulsórios de multa pecuniária por descumprimento do contrato administrativo. Contudo, como já destacado anteriormente qualquer penalidade, por mais branda e óbvia que pareça não poderá ser aplicada sem o respeito ao devido processo legal, sob pena de nulidade.
Aliás, talvez seja essa a única garantia concedida ao contratado diante da relação legalmente desigual que possui com a Administração Pública, sendo que, muito embora a regulamentação da Lei 9.784/99, trata-se de uma garantia constitucional.
Isso porque, além das cláusulas contratuais penderem ao contratante devido a supremacia do interesse público a própria lei de licitações (8.666/93) traz prerrogativas que desalinham ainda mais a relação contratual, como por exemplo a prevista no artigo 78, inc XV:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato
XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação.
Logo, mesmo diante da inadimplência da Administração não é concedido ao contratado o direito de cessar imediatamente a prestação de serviços ou não realizar entregas de materiais dos quais já esteja comprometido.
A nova lei de Licitações, artigo 137, § 2º da lei 14.133/2021 que se encontra em período de convivência com a Lei 8.666/93, tentou amenizar o prejuízo, possibilitando a extinção do contrato pelo do contratado em virtude de atrasos de pagamento por parte da Administração por período superior a dois meses. Contudo, embora a redução de prazo, manteve-se o desequilíbrio.
Em virtude desse cenário, torna-se cada vez mais importante que os contratados pela Administração detenham o conhecimento necessário das cláusulas contratuais aos quais serão submetidos durante a prestação de serviços e diante de eventual dificuldade de cumprimento, reivindiquem o correto curso do processo administrativo para que os atos da Administração sejam realizados dentro dos preceitos legais e não causem danos que poderão ser irreparáveis.
Até mesmo porque assim como se constitui o dever da Administração de fiscalização também lhe é conferida a premissa de observância ao princípio da legalidade que deverá ser aplicado de acordo com os preceitos de proporcionalidade e razoabilidade, em especial, nas decisões discricionárias, como por exemplo a dosimetria da pena.
Isso porque, em que pese as penalidades administrativas estejam previstas em lei e uma vez identificado o dano ensejado pelo descumprimento contratual é dever da Administração aplicar os preceitos sancionatórios previstos em contrato é sabido que a Administração possui certo grau de discricionariedade ao definir o prazo e o montante (no caso de multa).
Estamos novamente diante de dois poderes. O vinculado que obriga a Administração a atuar e o discricionário que lhe confere o poder de decidir o montante da penalidade aplicada. Contudo, como o poder de escolha conferido à Administração advém do atendimento ao interesse coletivo, caberá a ela diante do juízo de conveniência e oportunidade ao optar por uma dentre várias soluções possíveis agir dentro dos preceitos do princípio da proporcionalidade e da motivação.
Não há liberdade absoluta na decisão. A supremacia do interesse público não poderá justificar a atuação desproporcional e fora dos parâmetros razoáveis por parte da Administração perante interesses particulares, por isso a relação equilibrada entre causa e consequência será fundamental para tomada de decisão.
Até mesmo porque, grande parte das decisões da Administração que visarão o atendimento ao interesse coletivo igualmente refletirão no interesse dos particulares, sendo ainda mais prudente a triangulação entre necessidade x adequação x proporcionalidade em sentido estrito.
E aqui se ratifica a importância da motivação dos atos eis que a avaliação da razoabilidade só será possível se os motivos forem explicitamente conhecidos e justificados, pois na ausência disso, o juízo de valor conferido à Administração para determinar se o meio adotado para atingir a finalidade é proporcional ou não ficará notavelmente prejudicado.
Nesse sentido, a adoção de uma postura cautelosa e motivada do fiscal do contrato e da Autoridade Competente será sempre fundamental para que, em uma relação pautada pelo desequilíbrio, se tenha coerência sem afronta a legalidade.