A trinta anos a Administração Pública convive com a lei 8.666/93, a chamada lei de licitações que estabelece o regramento para a realização de compras públicas no país.
Diversas são as críticas à essa legislação, principalmente acerca de seu procedimento ultrapassado que por vezes burocratiza e atrasa o processo de compras, e, em consequência o atendimento de diversas demandas aguardadas pelos administrados.
Durante anos tramitou no Congresso Nacional os projetos de lei 1292/1995, 6814/2017 e 559/2013 (entre outros) que apensados geraram o Projeto de Lei 4.253/2020 com o intuito de atualizar a referida legislação às necessidades da Administração Pública moderna.
Foi então que após longa espera no dia primeiro de abril de 2021 tivemos finalmente, a publicação de uma nova lei (14.133/21), que está vigente desde a data de sua publicação trazendo relevantes mudanças de procedimentos e conscientização da Administração acerca da importância da etapa de planejamento inserindo o cenário público em um processo de governança corporativa e gestão por competências.
Contudo, o legislador atento às possíveis dificuldades que a Administração Pública teria de enfrentar para atualização de servidores e regulamentação dos novos procedimentos concedeu no artigo 193 da própria lei, um período de convivência de dois anos entre ambas as legislações, no qual ao administrador público seria conferida a discricionariedade de optar pela atualização da legislação antiga (lei 8.666/93) ou da nova lei (14.133/21).
Já ao final do primeiro ano do período de convivência entre as legislações o Tribunal de Contas da União Benjamin Zymler propôs a realização de auditoria voltada à avaliação dos aspectos que poderiam estar dificultando a ampla utilização do novo estatuto licitatório, eis que detectou o baixo uso da legislação até aquele momento:
“Não se olvida que o novo estatuto admitiu o uso das normas licitatórias anteriores por mais dois anos, conforme o inciso II de seu art. 193. Porém, tinha, da minha parte, a expectativa de que a Lei 14.133/2021 fosse utilizada de modo incremental nesse período, até porque o objetivo do legislador foi justamente permitir que esse intervalo servisse como aprendizagem das novas regras e institutos trazidos pela norma”
Ao contrário do que se esperava, a opção pela legislação antiga permaneceu quase que unânime durante todo o prazo de convivência das normativas que se encerrou em primeiro de abril de 2023.
Durante o período de convivência das legislações (01 abril de 2021 a 01 de abril de 2023) a decisão por publicar os processos licitatórios e contratações diretas em base na legislação antiga, era, de fato, discricionária. Contudo, a decisão de capacitar os servidores e alinhar os procedimentos para, então, receber a nova legislação era ato vinculado e obrigação da Alta Administração, o que não ocorreu na maioria dos entes federativos, parte deles por falta de estrutura técnica, e a outra parte por absoluta desídia.
Contudo, aproximadamente um mês antes do prazo estipulado para aplicação definitiva da lei, foi protocolado o Projeto de Lei 934/2023 de autoria do deputado Alberto Mourão, que visava justamente postergar o período de convivência entre as legislações.
Enquanto se aguardava pela tramitação do projeto de lei, para sorte de uns e desespero de outros, em edição extra do Diário Oficial da União do dia 31 de março de 2023, foi publicada a Medida Provisória 1167 que ampliou o prazo de convivência das legislações até dezembro de 2023 concedendo, portanto, um pouco mais de tempo para adequação dos procedimentos por parte da Administração Pública para então, aplicar a nova lei de licitações de forma definitiva.
Não obstante a isso, o que mais chama atenção é a falsa sensação de alívio que a Medida Provisória conferiu a grande parte dos administradores públicos. Isso porque, enquanto protelam a utilização definitiva da lei 14.133/21 (que frisamos: está vigente desde abril de 2021) e deixam de estruturar e redesenhar seus processos internos continuam a publicar processos de compras com fulcro na antiga lei gerando diversos contratos que deverão ser administrados e fiscalizados tendo como base a lei 8.666/93 até o fim de sua vigência, o que trará retrabalho futuro e redobrada atenção diante da necessidade de controle de contratos firmados com base em diferentes legislações.
A nova lei de licitações positivou entendimentos dos órgãos de controle e trouxe soluções viáveis para alguns dos problemas enfrentados pela Administração Pública em seus procedimentos de compras, viabilizou a indicação de marca para determinados casos e fará com que a Administração reduza o número de processos devido a possibilidade de prorrogação de contratos de serviços continuados até o prazo de dez anos.
Além disso, buscou priorizar as modalidades eletrônicas conferindo maior transparência, agilidade e competitividade até mesmo para objetos mais específicos, como obras e serviços de engenharia.
Em contrapartida as críticas se instalam e justificam o atraso na implantação definitiva quando observamos as diferentes realidades estruturais dos Estados e Municípios Brasileiros.
Isso porque a nova legislação é federal e por essa razão deverá ser regulamentada nos demais entes federativos (Estados e Municípios) que apresentam diferentes realidades tanto em número de habitantes, arrecadação ou em estrutura operacional que possibilite o estudo, análise, redesenho de processos, treinamento dos servidores e implementação da nova lei de licitações de forma ágil e segura.
Muito embora a lei 14.133/21, no artigo 176 tenha considerado tratamento diferenciado para os municípios até vinte mil habitantes conferindo prazo de seis anos para designação do agente de contratação como servidor efetivo, implantação das modalidades eletrônicas e utilização do Portal Nacional de Contratações Públicas não eximiu os mesmos municípios de aplicar de forma definitiva os demais artigos da legislação, inclusive quanto a etapa preparatória, que requer maior estruturação e envolvimento de servidores já que o princípio da segregação de funções é a base para o cumprimento da etapa.
Através desse conceito diversos agentes passam a compor o fluxo do processo, e dessa vez com atuação determinante para que o resultado útil seja atingido. Será, portanto, imprescindível a atuação do setor requisitante de forma mais ativa juntamente com área técnica e equipe de planejamento pois terão a obrigação legal de definir entre várias possibilidades de contratação aquela que melhor satisfaça o interesse público, priorize o ciclo de vida do objeto e otimize o processo de compras.
Outro importante desafio imposto pela nova lei de licitações é a Governança Corporativa, sendo papel da Alta Administração avaliar o ambiente, os cenários e o desempenho para que seja possível o direcionamento de forma priorizada das políticas públicas visando o atendimento das necessidades dos cidadãos através dos processos de contratações públicas.
Observa-se, portanto, que com as modificações impostas pela nova lei o processo de compras públicas deixa de ser um ato isolado para fazer parte do fluxo de trabalho do ente público que, por sua vez, terá a necessidade de atuação em rede com o envolvimento de áreas distintas dentro da Organização como forma de viabilizar o atendimento dos requisitos legais. Ressaltando, novamente, a relevância da atuação da Alta Administração nesse processo de mudança, já que além de ser responsável pelo planejamento e alinhamento das contratações às políticas públicas terá o fundamental papel de criar a rede de trabalho proporcionando condições adequadas para que os novos agentes envolvidos sejam capazes de bem desempenhar as suas funções.
Diante desse cenário de relevantes mudanças atrelado ao fato da tramitação do projeto de lei 934/2023, da Medida Provisória 1167/23, publicada pelo Governo Federal, que prorrogou o início da vigência definitiva da nova lei, as diversas divergências que perduraram até a véspera da publicação da Medida Provisória, acerca do marco temporal a ser utilizado (se a autorização do processo ou a publicação do edital) e ainda a falta de capacitação dos servidores geraram um cenário de incertezas que vem prejudicando o processo de transição entre as legislações.
Tal fato, contudo, poderá explicar o lento processo de adesão dos municípios à nova legislação de forma definitiva, mas não justificará para os órgãos de controle externo a desídia daqueles que deixaram de redesenhar seus processos a fim de iniciar suas regulamentações e a consequente capacitação dos servidores eis que falharam no cumprimento de seu dever legal.
Ana Paula Costa
Advogada, especialista em Direito Público e em Gestão Pública e Direito Administrativo. Palestrante, instrutora de treinamentos, consultora do Sebrae-RS e CEO da empresa Fature Soluções Empresariais e Governamentais.